Quando, depois do pico da crise, as insolvências começaram a cair, percebeu-se que o fenómeno não significava necessariamente que as famílias e as empresas tinham ultrapassado as dificuldades. O que muitas fizeram foi procurar alternativas e, por isso, assistiu-se a uma acelerada subida do recurso ao Processo Especial de Revitalização (PER), que, apesar de também passar pelos tribunais, é mais rápido e mais propenso a acordos com os credores. Mas, agora, também a adesão a este mecanismo está pela primeira vez em queda, muito porque já há vários tribunais a recusar o acesso dos particulares a estes processos.
O PER, lançado pelo anterior Governo em 2012, demorou algum tempo a cumprir a expectativa que tinha sido criada de que serviria de travão à escalada das insolvências, que parecia imparável a partir de 2011. Mas, três anos depois do seu lançamento, registava-se já perto de 6500 pedidos de revitalização de pessoas colectivas e singulares, com subidas a superarem os 30% ao ano.
No entanto, no primeiro semestre de 2016, e pela primeira vez desde que foi criado, o PER registou uma queda no número de adesões. De acordo com dados cedidos ao PÚBLICO pelo Instituto Informador Comercial (IIC), uma consultora de gestão de créditos, entre Janeiro e Junho deram entrada nos tribunais 867 pedidos de revitalização financeira, o que significa uma descida de 40,4% face ao mesmo período de 2015.
O recuo foi maior junto dos particulares, com o número de processos a cair 55,6% para 424, o que fez com que ficassem, como já não acontecia desde 2013, abaixo dos PER das empresas (443, após um decréscimo de 11,4%).
Uma análise mais fina aos processos movidos por pessoas singulares mostra que foram diminuindo gradualmente ao longo dos últimos seis meses. Em Janeiro, ainda houve 107 pedidos (contra os 114 do mesmo mês do ano passado), mas em Junho já só deram entrada nos tribunais 52, praticamente um terço do número registado no período homólogo.
É uma tendência inédita, já que os PER dos particulares não arrancaram com o mesmo fôlego do que os das empresas, até pelas dúvidas que existiram de início sobre se as famílias poderiam ter acesso a este mecanismo, mas rapidamente se tornaram uma alternativa para muitas das que preferiam não seguir o caminho das insolvências – não só pela conotação negativa desse tipo de processos, mas também por não serem tão vantajosas para os devedores. A revitalização, além de suspender as acções de execução, facilita os acordos para perdão e pagamento faseado das dívidas, embora em alguns casos esses planos acabem por não ser cumpridos e os PER originem insolvências.
As recusas dos tribunais
As dúvidas iniciais sobre a possibilidade de as famílias aderirem à revitalização estão agora a transformar-se em certezas, o que parece explicar uma parte importante da queda registada durante o primeiro semestre. Desde que, há um ano, o Tribunal da Relação de Évora indeferiu um recurso de uma pessoa que requeria um PER, vários juízes “têm recusado o acesso de particulares” a esta alternativa à insolvência, avançou ao PÚBLICO o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Judiciais (APAJ), os profissionais que são nomeados para acompanhar estes processos.
Para Inácio Peres, apesar de a melhoria das condições económicas poder justificar uma parte da descida, “a principal razão que explica o recuo dos PER é o facto de a jurisprudência estar a mudar”. Se até aqui muitas famílias viam estes planos de recuperação aprovados pelos juízes, porque a actual lei não especifica que se destinam apenas às empresas, “verificou-se nos últimos meses uma tendência, que começou em Évora e se alastrou a outros tribunais, no sentido de se entender que o PER não se aplica às pessoas singulares”. E, por isso, há vários processos a serem recusados, “a não ser quando os particulares em causa são empresários”. Também a coordenadora do Gabinete do Apoio ao Sobreendividado (GAS) da Deco, Natália Nunes, confirmou que “já há várias decisões de rejeição de PER” de famílias endividadas.
“A principal razão que explica o recuo dos PER é o facto de a jurisprudência estar a mudar”
Inácio Peres, presidente da APAJ
Estas recusas têm sido justificadas com o facto de os particulares já terem uma outra alternativa às insolvências, a apresentação de um plano de pagamento de dívidas. No entanto, os administradores judiciais defendem que esta saída não é tão vantajosa, já que os acordos de revitalização apenas exigem o quórum de 50% dos credores, enquanto nos planos de pagamento é exigida luz verde de todos ou, no mínimo, de dois terços. Além disso, “a conclusão do PER é mais rápida e as acções de execução, actuais e futuras, são suspensas”, explicou o presidente da APAJ.
A coordenadora do GAS, porém, não partilha da mesma visão por considerar que o processo de revitalização também tem constrangimentos, nomeadamente o facto de não abranger casos “em que já houvesse incumprimento”. Ainda assim, admite que a alternativa que os tribunais estão a dar às pessoas também não é a mais adequada, propondo que seja criado “um mecanismo prévio e extrajudicial à insolvência”. Face às recusas dos juízes, Natália Nunes acredita que vai aumentar o recurso aos planos de pagamento, mas também prevê que, depois de sucessivos meses de quedas, se assista “a um aumento das insolvências”.
Já tem havido recursos para o Supremo de decisões da Relação. Numa delas, a que o PÚBLICO teve acesso, a rejeição do PER é confirmada. Mas há outros casos à espera de decisão no Supremo. O presidente da APAJ referiu ainda que também foi pedido ao Tribunal Constitucional que se pronunciasse sobre o tema “por se entender que pode haver uma violação do princípio de igualdade”, mas os juízes do Palácio Ratton consideraram que não deveriam tomar uma posição. No fundo, os administradores judiciais querem que fique clarificado rapidamente se as famílias podem ou não aderir à revitalização.
Inácio Peres referiu que o recuo dos processos de revitalização também está acontecer porque “há famílias que já nem chegam a tentar por causa das decisões que os juízes têm tomado”. E admitiu que este fenómeno também pode estar relacionado com a falta de meios nos tribunais. “Assim deixa de haver 900 processos e passa a haver 450”, exemplificou.
Falências caem 8%
Além do PER, o anterior Governo também lançou em 2012 uma alternativa às falências judiciais exclusivamente destinada às pessoas colectivas: o Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (Sireve), que é mediado pelo Iapmei. Os dados mais recentes divulgados por este organismo público comprovam que não tem tido a procura esperada. Até Março deste ano, houve apenas 554 adesões ao programa, sendo que, dos processos concluídos, apenas em 53% dos casos foi conseguido um acordo entre devedores e credores.
Tanto o PER, como o Sireve estão em vias de sofrer revisões pela mão do actual executivo e com base nas propostas da Estrutura de Missão para a Capitalização de Empresas. Uma das alterações em cima da mesa é a redução do quórum necessário para que os credores aprovem planos de recuperação. Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Economia não adiantou, em concreto, que mudanças serão adoptadas para agilizar estes mecanismos, mas reiterou que serão tomadas decisões “com o objectivo da adopção de medidas adequadas à promoção de um melhor enquadramento à recuperação e restruturação empresarial”. Não se referiu, porém, a eventuais revisões com impacto para as famílias em dificuldades financeiras.
As insolvências das famílias caíram 2,6%, o que representa um abrandamento do ritmo de queda face a 2015.
Ao mesmo tempo que os processos de revitalização estão a cair, também as insolvências mantêm a tendência de abrandamento que começou a registar-se ainda em 2014. De acordo com os dados do IIC, deram entrada 8119 falências judiciais no primeiro semestre deste ano, o que significou uma queda de 8,3% face a 2015.
As empresas protagonizaram o maior decréscimo (23,1% para 1885 processos), mas o recuo junto das famílias abrandou, o que poderá já ser uma consequência das recusas do PER. Depois de, nos primeiros seis meses do ano passado, se ter verificado uma descida de quase 9%, entre Janeiro e Junho de 2016, o número de insolvências de particulares caiu apenas 2,6% para um total de 6234 casos (61,5% do total).
Houve, porém, quatro distritos do país em que se verificou o fenómeno inverso, com o número global de falências judiciais a aumentar: Beja, Coimbra, Évora e Vila Real. Em três destes casos, foi pelo lado das insolvências das famílias que os processos aumentaram, com destaque para Coimbra, onde a subida foi de 37,6%. Porto e Lisboa lideram, a larga distância, com 2325 e 1709 entradas nos tribunais no primeiro semestre, respectivamente.
FONTE: Jornal Público (15/07/2016)