As pessoas que "enfrentem dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações" financeiras ou em situação de insolvência meramente iminente, vão passar a ter à sua disposição um novo instrumento para chegar a acordo com os credores sem que seja preciso entrar em insolvência. Trata-se do Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAC), que o Governo aprovou no pacote de medidas que levou recentemente a Conselho de Ministros para a recapitalização de empresas e que prevê, entre outras coisas, uma protecção acrescida a quem adere: mesmo sem receberem, as empresas de serviços essenciais ficam impedidas de cortar os fornecimentos.
O PEAC destina-se a singulares e a famílias, mas também a entidades que não sejam empresas, como associações sem fins lucrativos. Segundo a proposta de diploma a que o Negócios teve acesso, para aderirem terão de provar a falta de liquidez e também a impossibilidade de acesso a crédito. É um mecanismo próximo do Processo Especial de Revitalização (PER), que já existe para empresas e ao qual algumas famílias chegaram a aderir, mas que o Governo vai agora limitar às pessoas colectivas, e tornar mais exigente.
"É muito importante que os sobreendividados tenham alternativas à insolvência, que é a única hipótese que têm agora à disposição. E, de preferência, sem ser preciso recorrer ao tribunal", afirma Natália Nunes jurista da DECO, entidade a que chegam regularmente famílias em dificuldades – em 2016 foram cerca de 29.500 pedidos de ajuda e em 2017 o ritmo mantém-se. Para já, contudo, o novo processo continuará a exigir uma intervenção de um juiz, mas, ainda assim, considera a especialista, "é bastante positivo".
Para avançar com um PEAC, basta o acordo de um dos credores. A intenção é comunicam-no ao juiz do Tribunal do Comércio – o mesmo que tem a competência para declarar a insolvência –, que nomeará então um administrador judicial provisório. Entretanto, o devedor deverá dar aos restantes credores conhecimento de que deu início a negociações com vista à celebração de um PEAC, convidando-os a participar.
Protecção durante as negociações
Durante o período de negociações os devedores têm uma protecção acrescida e, além de não ser possível intentar contra eles novos processos de cobrança de dívidas , suspendem-se as que estejam em curso e que, havendo acordo, se extinguirão. Por outro lado – uma novidade deste novo regime – enquanto perdurarem as negociações, não poderá ser suspensa a prestação de um conjunto de serviços públicos essenciais e que a lei enumera: água, luz, gás, comunicações, serviços postais e recolha e tratamento de lixo. Uma medida "muito positiva", já que "salvaguarda o mínimo para a sobrevivência com alguma dignidade", considera a jurista da DECO.
Quanto às empresas de serviços, ou entram no acordo de pagamentos, ou serão depois ressarcidas pela massa insolvente, se não houver acordo e a insolvência vier a ser decretada. Alem disso, os prazos que têm para avançar com execuções suspendem-se, pelo que, na ausência de acordo, poderão sempre voltar à carga mais tarde. Em contrapartida, durante as negociações o devedor não pode, sem autorização do administrador judicial provisório, praticar "actos de especial relevo", como vendas, compra de imóveis ou de novos contratos. Suspende-se também o eventual processo de insolvência que tenha sido anteriormente iniciado e que se extinguirá se as negociações chegarem a bom porto.
Para que seja assinado e homologado um acordo, é preciso que seja votado por credores que representem no mínimo um terço das dívidas. E, destes, que mais de dois terços votem sim e que mais de metade sejam credores não relacionados (sem ligação directa ao devedor).
Agora a insolvência é o único recurso
Enquanto estas novas regras não entram em vigor, e depois de os tribunais terem decidido que o Processo Especial de Revitalização (PER) era só para empresas, as famílias sobreendividadas não têm opção que não apresentarem-se à insolvência, com toda a carga social negativa que isso acarreta. Na insolvência há dois caminhos: ou um acordo de pagamentos, sempre complicado e em que é permitido manter alguns bens, como a casa de morada de família; ou a exoneração do passivo restante, um mecanismo legal que consiste na liquidação de todo o património e depois, durante cinco anos, os rendimentos obtidos pelo insolvente são direccionados para o pagamento das dívidas, retirando-se apenas um valor para a sobrevivência, que ronda, em regra, dois salários mínimos nacionais. Esta última via é a mais usada pelas famílias que vão para a insolvência, mas passados os cinco anos ficam livres das dívidas, tenham ou não sido pagas na totalidade.
PERGUNTAS A INÁCIO PERES PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DOS ADMINISTRADORES JUDICIAIS
Estado vai continuar a não facilitar e a não perdoar capital
Inácio Peres, especialista na área das insolvências, destaca aspectos positivos no novo plano, mas lamenta que o Estado não seja mais flexível.
Ao proteger as famílias, o novo regime prejudica as empresas fornecedoras?
No Processo Especial de Revitalização [PER] havia o risco de serem cortados os serviços mínimos no caso de falta de pagamento. Nesse sentido esta nova regra vem proteger os devedores. Por outro lado, o prazo que as empresas têm para exigirem judicialmente os valores em dívida, de seis meses, também é suspenso e volta a começar a contar no caso de no fim ser declarada a insolvência. Esta regra passa a aplicar-te também no PER, para empresas, e evita que prescrevam os direitos dos fornecedores.
O PAEC será um instrumento positivo para as famílias?
Penso que sim. Temos o exemplo das empresas, em que a maioria que se apresenta ao PER já está insolvente, mas apesar disso algumas ainda conseguem recuperar. A questão é saber se depois os planos são cumpridos. No PER, cerca de 40% são aprovados e homologados, mas se são ou não cumpridos, não se sabe. Mas serão muito inferiores aos 40%.
O Estado continua a não facilitar?
Por lei, em regra, o Estado não pode perdoar capital nem juros. E esta indisponibilidade vai continuar. Devia facilitar e alterar esta norma. Não o faz e o que acontece é que, por vezes, num PER ou agora num Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAC), vai exigir tudo, depois a empresa ou a família vai para a insolvência, e aí o Estado perde tudo, porque não há dinheiro para lhe pagar. Numa negociação de um PEAC, bastará que o Estado não aceite o plano para este ficar inviabilizado. É um problema e um factor preponderante e determinante no insucesso de alguns processos de recuperação.
FONTE: Jornal de Negócios (26/03/2017)