Nos primeiros nove meses de 2017 foram emprestados, em média, 17,7 milhões de euros de crédito ao consumo por dia. No total, foram concedidos 4800 milhões de euros de novo crédito para compra de carro, electrodomésticos e muitas outras coisas. Um crescimento acima 12% em termos homólogos, e que faz despertar receios de que muitas famílias estão a cair, novamente, numa espiral de endividamento excessivo.
As campanhas de promoção deste tipo de crédito estão por todo o lado: na rádio, na televisão, na caixa do correio, no email e no telemóvel. E são cada vez agressivas, porque estão associadas a ofertas a que é difícil resistir, como saldos em cartão, equipamentos electrónicos, viagens e descontos. A par da forte persuasão, os produtos de crédito estão cada vez mais complexos, de difícil compreensão, mesmo para pessoas com formação superior fora da área da economia e gestão.
Alguns dos produtos têm verdadeiras “rasteiras”, como a proliferação de cartões de crédito com pagamento mínimo mensal de 5% e 10% dos saldos, percentagens que podem ser aumentadas se o cliente se dirigir a uma caixa automática (vulgo multibanco), ou no acto da compra. Pagar 5% ou 10%, ou mesmo 50% do montante em dívida, por mês, é fazer disparar o valor pago em juros.
Por outro lado, rapidamente o cliente atinge o limite de crédito autorizado e logo surge a tentação de subscrever outro cartão. E praticamente ninguém tem noção dos juros pagos, que nos cartões mais recentemente ronda os 16%, mas nos mais antigos podem ficar muito acima dos 20%. E, novidade recente, começam a surgir cartões em que o habitual período sem juros, de 30 a 50 dias, só se aplica a quem optar pelo pagamento fraccionado.
O saldo total do crédito ao consumo não é muito elevado, representava cerca de 20% do endividamento das famílias no passado mês de Setembro (num total de 115.106 milhões de euros), com a habitação a representar os restantes 80%. Mas é este crédito que gera maiores situações de incumprimento, e que está na origem de boa parte das situações de “falência” financeira dos consumidores. Isto porque é frequente as famílias terem vários créditos, nomeadamente através de cartões de crédito, e de subscreverem novos empréstimos para pagar outros já em incumprimento, e esse desequilíbrio chega, em muitos casos, ao empréstimo da casa.
A aceleração deste tipo de crédito, mais de 40% do qual é para a compra de automóveis, fica a dever-se “ao aumento da confiança das famílias, sendo a primeira variável a despertar num cenário de recuperação económica”, explicou ao PÚBLICO Jorge Farinha, professor da Faculdade de Economia do Porto.
A forte concorrência entre bancos para ganhar quota de mercado, um negócio dominado por bancos estrangeiros, leva a práticas que “replicam o que já aconteceu no passado, embora a sinistralidade [incumprimento] tende a ser menor que no pico da crise”, adiantou Jorge Farinha, responsável por várias disciplinas na área de Finanças.
E o que aconteceu no passado foi a assunção de empréstimos que, em face de uma redução de rendimentos, as famílias não conseguiram suportar, entrando em incumprimento, o que leva, no desfecho mais dramático, à perda da casa e ou à insolvência pessoal.
O Banco de Portugal (BdP) começa a olhar com preocupação para o ritmo de evolução do crédito, que resulta de critérios mais flexíveis na sua concessão, nomeadamente na avaliação da capacidade financeira das famílias para cumprirem os encargos assumidos em caso de redução do seu rendimento e num cenário de subida das taxas de juro, que se deverá colocar a partir de 2019. Boa parte do crédito ao consumo tem taxa fixa, ao contrário do que se passa na habitação, que está associado à Euribor, o que acaba por ter um impacto muito elevado no orçamento familiar.
No relatório de Estabilidade Financeiro, divulgada esta semana, o BdP destaca que “os fluxos de novos empréstimos a particulares [consumo e habitação] registaram um crescimento significativo no primeiro semestre de 2017, tendo já superado, em percentagem do rendimento disponível os níveis observados no início do Programa de Assistência Económica e Financeira”, imposto pela “troika”, em 2011. A preocupação do supervisor é bastante maior no crédito à habitação, onde admite tomar medidas para “apertar” alguns critérios de concessão por parte dos bancos, que na prática funcionarão como travão a operações de maior risco.
Recentemente, o BdP aprovou regras que reforçam os deveres das instituições na avaliação dos deveres de solvabilidade, que entrarão em vigor a 1 de Janeiro de 2018, no âmbito de legislação comunitária, que, no entanto, não impedem que o regulador admita tomar medidas complementares.
Sinais de alerta
A agressividade comercial é acompanhada de uma certa ligeireza na avaliação da capacidade financeira do cliente. Até 1500 euros é frequente encontrar crédito concedido na hora, sem comprovação de rendimentos, e da situação socioprofissional, despesas regulares. Quando muito, dá tempo para uma consulta à Central de Responsabilidade de Crédito, que é uma espécie de cadastro do histórico financeiro do cliente, contendo informação sobre eventuais falhas de pagamento de empréstimos.
Agressivas são também as campanhas de crédito com taxa de juro zero, reflectida na Taxa Anual Nominal, que é a taxa habitualmente promovida, mas pode não ser zero, porque os juros estão escondidos noutros custos, como o de abertura de processo, seguros obrigatórios, comissão de pagamento de prestação, e isso só é reflectido na Taxa Anual de Encargos Efectiva Geral (TAEG), que tem de ser comunicada ao cliente, e tem que estar nos contratos, mas que não é de fácil percepção pelos clientes.
Natália Nunes, coordenadora do Gabinete de Apoio ao Sobre-endividado (GAS) da Deco, considera que “se voltou à forma de contratação praticada antes da crise financeira de 2008”, e considera que “há um claro aproveitamento da iliteracia financeira de muitos consumidores”, o que deveria levar “a uma outra atenção do regulador”. E os resultados são preocupantes. Natália Nunes refere que “todos os dias chegam ao GAS pedidos de famílias sobre-endividadas e que não há uma diminuição face aos anos anteriores. De Janeiro a 25 de Outubro, o GAS recebeu 26.080 pedidos de ajuda, já perto dos cerca de 30 mil do total do ano passado.
“A situação das famílias não está também como parece”, refere a coordenadora do GAS, admitindo que já é visível uma preocupação de muitas famílias com o impacto que a subida da Euribor pode ter no seu orçamento.
O presidente da Apusbanc Consumo, associação de defesa do consumidor, Júlio Martins-Mourão diz não ter dúvidas que a publicidade do crédito ao consumo “é agressiva e enganosa”, admitindo que há coisas a corrigir, como rápida comunicação à Central de Responsabilidade de Crédio da entrada em incumprimento dos clientes, que actualmente é de dois meses. Júlio Martins-Mourão também defende medidas rápidas relativamente à formação dos funcionários afectos à venda destes produtos.
A introdução de uma disciplina de formação financeira, a começar no secundário, é fundamental, defende Jorge Farinha, considerando que essa matéria “não é menos importante do que aprender Português ou História”. Da sua experiência pessoal, diz o professor universitário, “há muitas pessoas com formação superior com grande desconhecimento destas matérias”, em boa parte porque a linguagem “é muito inacessível”.
FONTE: Público (10/12/2017)